À criança,
não basta o sabor da areia.
A espuma das ondas.
O sol apaziguador.
A aragem morna.
É-lhe necessário (sensível às sombras),
outros sabores e aromas.
Malograr-se em amarguras.
Tragar ávida as angústias.
Flagelar-se em sórdidas torturas.
Correr, bárbara,
por milhentos ódios e desventuras.
Cantar à fealdade.
Cometer terríficos crimes, mas
melindrar-se de fronte à atrocidade.
Porque não se quieta,
esse infante pólo
de ambiguidades?
Porque execra o ócio,
e dança jubilosa no silêncio?
Porque não se contém,
e salta ao pé coxinho
pelas tumbas,
sem medo de ninguém?
Adora, esculpe,
pinta, cria,
inventa, caga,
mija, fornica.
E ao fim do dia,
inebria-se em absorto,
nos intensos cheiros
do seu corpo.
Tem sonhos premonitórios,
mas fracassa em contemplar.
Só encontra prazer no deboche,
na intempérie e no azar.
É um fogo maldito
que não some e sucumbe,
enleva-se no ar.
E quanto mais vendaval,
torrentes de desgraça,
sevícias e maldições.
Maior a sua cegueira.
Maior a sua graça.
As sombras frescas das palmeiras,
ensombram muros cheios de asneiras.
Tão bom o cheiro das laranjeiras
e a luz que’mana nas calçadas soalheiras.
Ébria brisa metafísica.
Morna palpitação mística.
Arrastas-me por estas ruelas baixias e antigas,
em tórridas rítmicas arritmias.
Ao alpendre, alegre, canto.
Trovas em árabe, bem cantadas.
Guitarradas em francos delírios.
Feitiços de casa apalaçada.
Entropicalizado, corro ao rio-mar.
A areia dourada, piso em valsa.
Salto ao barco confiante.
Parto rumo ao horizonte,
Q’Além-mar, também é casa.
Muro alto.
Nespereira mansa.
Jardins castos, verdes esperança.
Solar italo-lusitano.
Solarengo, mas urbano.
Gasto. Conservado.
Refúgio dos tempos mundanos.
Sobre a mesa:
Tâmaras.
Cerâmicas.
Faianças.
Terracotas.
Vidraças.
Plantas.
Viola flamenca.
Dissonâncias.
Café.
Bananeiras.
Sementes.
Fragâncias
Pinturas. Cubismos.
Bancos feitos à mão.
Sufismos.
Costela de Adão.
Notas.
Sarrabiscos.
Batucadas.
Frenesim.
Escultura branca,
cândida,
sob aveludado setim.
Olho verde. Olho azul.
Sem sombras, de perfil.
Vista do terraço,
mão da musa no lancil.
Brilha o sol.
A maresia até aqui.
Vem da baía,
do cadeirão, senti.
Da varanda, jasmim.
Terra molhada.
Com vento, alecrim.
Vagueamos pelas ruas,
descalços de pretensões,
dentre casas caiadas,
mal alumiados por lampiões.
Entro no coreto e finjo.
Sou músico tropical, toco sem ouvido.
Cantarolamos debaixo das palmeiras,
(…) o vento morno vem.
Bafeja-nos o cabelo,
enquanto o sol se põe.
A noite adentra,
mas nada mais importa.
Irá durar para sempre (melosa e quente).
Enquanto os nossos sentidos se avivarem.
As ondinhas rebentarem.
As andorinhas falarem.
Nesta marginal, eu vivo eternamente.
Lá vai o pai ao norte, levando as carícias e
cantigas da manhã.
Choro e berro por ele.
Embala-me a mãe ao som de Brahms.
Não somos ninguém, mas família.
Um bando ao acaso da periferia.
Cheios dos sonhos, amor e vida.
Desejos de perene festa, júbilo, folia.
Juntinhos vamos ao café.
À noitinha, ao salão dançar o tango.
Tanta gente bem vestida.
Tanta ingénua e cálida alegria,
é ainda o mundo dos encantos.
Finda a noite, corremos à baía,
cantarolando agarrados ao pai.
Descemos pelas suas costas de gigante,
palco das nossas danças também.
Protejo e dou a mão à mãe.
Que aconchega o petiz em seu ventre.
A irmã, já quer ir longe,
pondo-se o pai na sua frente.
-Nanã Mel! Vens para o pé da gente.
Vamos para casa!
– Não vou, quero ficar aqui,
quero ficar aqui para sempre!
iêlêrirê
pararunparirê
iêlêrirê
pararunparirê
Lá vai o índio, pobre gente,
comer à casa do patrão.
Queria-se livre, livremente,
mas é lá que está o pão.
iêlêrirê
pararunparirê
iêlêrirê
pararunparirê
Lá vai o índio, pobre gente
anuindo aos que lá estão.
Trabalhando baralhado,
pela charada do ladrão.
iêlêrirê
pararunparirê
iêlêrirê
pararunparirê
Lá vai o índio, pobre gente,
Foge, foge, mas em vão.
ora à árvore, ora açoite,
Morte aos filhos da razão.
Cabelos d’oiro.
Safiras de anil.
Tez morena.
Fina e gentil.
Germana dos trópicos,
archote a arder.
Teu calor emana,
urdindo em mim
tremenda gana,
p’ra por ti o mundo correr.
Musa de sal.
Esbelta, exótica.
Peço-te, foge comigo.
Procuremos refúgio na praia
mais inóspita.
Lá, faremos nossa cabana,
dentre palmeiras
e coqueiros.
Alimentados a paixão e fogo.
Sem vestes ou túnicas.
Apenas o rubor
dos nossos corpos.
Peço-te,
ensina-me a ser livre.
A amar o mar, o horizonte.
Navegar à barlavento.
Viver com sentimento.
Largar sem ressentimento.
Não paro de te procurar
em mim.
De sonhar teu corpo.
De imaginar, ao entardecer,
sob tuas pernas,
meu repouso.
De nossos dias, como serão
belos, amenos.
Repletos de inimagináveis
alegrias.
Serenos.
E sonhos,
ardentes sonhos.
Porque sem essa pulsão
quimérica,
que nos instiga e liberta,
que seremos nós,
senão solta matéria,
à mercê,
dum obscuro
e louco poeta?
Nademos juntos pelas ondas da fruição.
E se fatigados,
repousemos.
E se enfastediados,
gritemos aos céus,
dos mais longínquos rochedos.
Clamando novo fulgor.
Para que esta fugaz
viagem,
seja em tudo,
uma ilusão de
perene amor.
Sós. Enfrentamos tudo sós.
E por mais que o neguemos,
É sós que vivemos,
É sós que morremos.
Tremores do corpo.
Agonias do afecto.
Enquanto mijo e reflito, o mijo cai do tecto, sob meu corpo pendurado e erecto.
Lembrete: o primeiro é sempre o que come mais.
Vários rapazes acercam uma mulher.
Um vai às axilas, outro ao braço.
Outro cheira-lhe as mãos e outro as partes de baixo.
Outro tenta beijá-la, outro abocanha-lhe o bico.
Um último agarra-se às suas pernas, e chora aflito.
“Odeio ver um preto foder uma branca”
Armando S.
Ainda sinto o mijo deles nas narinas (do camião que passou).
Porém, o meu sentido acha-o suportável.
Transporta consigo um apelo. Um travo adocicado. O aroma inebriante da ignorância que entre eles se acomoda.
Ai, como eu tenho pena deles, dos porcos.
Enquanto obro, meu pai mata as galinhas que se criaram.
A minha mulher coloca os seus corpos inertes, semi-vivos na água a borbulhar.
De seguida, a despena.
A minha sogra tira os miúdos ao animal, e eu obro, para de seguida comê-lo.
Concreto que melhora com o tempo é poesia.
Arquitecto Ricardo R.
Num dia cheguei a casa.
Os cães uivavam como loucos,
num grande coro que transmitia
uma melodia infernal,
arrepiante, melancólica.
A razão era eu.
E depois do grito?
Do espasmo?
Do orgasmo?
O que fica, senão o vazio?
Na mais profunda das noites, ateei fogo ao meu próprio coração.
A intenção?
Minha própria salvação.
Via-te por todas as esquinas.
De sacos de compras em braços,
a caminhar a passos largos.
Febril, sorumbático.
Labaredas queimam o jardim de arrudas.
Há olhos de sangue no azulejo escorregadio.
A carne não dura. O pão tem bafio.
A ventania rasga os cortinados de linho.
Dois mastins brancos correm às docas do rio.
Uivos de gente.
Um sol gigante.
Três homens pássaro na chaminé.
Um batel nas onduladas marés.
Castelos e fortes longínquos.
Num baú, a cabeça de Cristo.
Está frio, sacudo a crina, esperneio aflito.
Serro os dentes num possante fígado.
Olho para dentro, olho para o precepício.
Moscas mascam seus pensamentos furtivos.
Ilha silenciosa, entre as águas turvas.
No deserto, ajuntamentos e indústrias.
Campos de trigo sob uma chuva de piroclastos.
Feixes, raios de luz para todo o espaço.
Agoiros, templos, céu estrelado.
Poesias malditas ditas sob tecto sagrado.
Que há de errado comigo?
É o tamanho das minhas orelhas?
A corcunda das minhas costas?
Os meus olhinhos pequeninos?
Os meus ombros estreitos e tortos?
Os meus braços extra longos?
A minha voz adamada?
A minha preguiça em ser um déspota?
As minhas unhas mal cortadas?
O meu cabelo com caspa?
A minha roupa amarrotada?
O meu hálito de fome?
Este ar desamparado?
O cheiro das minhas meias?
A catinga dos meus sovacos?
Os meus óculos riscados?
Dos traumas e abusos, meu quarto acabou escuro.
A esse ignoto, lúgubre e surdo ermo, fui-me retirando em chamas, gemendo.
Nada mau, ser meu próprio quarto, calabouço que tão bem reconheço.
Não viram eles que a espumas vindas da minha boca, era o que de fastio impregnava as mares?
Acaso ignoram que na escuridão também se gera a revolta?
Na cegueira, muito se desconsidera. E o que é estranho causa repúdio.
Porém, que esperava eu desses intervenientes obscuros?
Arrancado às profundezas do indivisível, vou vivendo atabalhoadamente neste corpo.
Sorvo tudo aquilo que me mantenha. Tudo aquilo que possa, de alguma forma, me sustentar.
Os sucos da carne, as raízes do chão. O leite comprado, as frutas, o pão.
Vou à escola primária, aprender a ser gente. A ser educado e a falar bem.
Dentre muitas coisas, percebo que o tempo vem duma máquina com ponteiros que nos diz quando começar e parar algo.
Que vim parar aqui por intermédio da copulação de dois Homo sapiens e me desenvolvi envolto num caldo amniótico.
Todos os dias sou sentado, por longas e enfastiantes horas, à espera que me digam quando ir, e tem sido sempre assim.
Muitos daqueles com quem convivo, pedem-me para maneirar a voz, o meu falar é efeminado, e tal, não é digno de um menino.
Vejo e oiço muitas coisas que me impressionam. Os meus irmãos a lutar por um pedaço de pão seco.
Os seus olhinhos azuis, húmidos quando estão tristes.
A rudeza de algumas palavras, que mesmo não sabendo o seu significado, me soam tão mal.
Aos poucos, todos vão-me instruindo daquilo que melhor convém a cada um.
Muitos recorrendo a algum método subtil, outros a algum outro método mais brutal, da qual, também eles foram vítimas.
O mundo sensível vai perdendo sentido, muitos símbolos vão ocupando o seu lugar.
Os números, as palavras… Ainda assim vou brincando e imaginando quando posso, e ninguém me olha.
A vida por ora tem sido assim.
Íamos trabalhar para o campo,
à boleia de um jipe preto.
Subimos a ladeira,
e vi da janela aberta,
um espectáculo horrendo.
– Olha que eles matam-se!
Crânios em assincronias frenéticas.
Vis espumas fétidas.
Três selvagens cães banqueteavam-se num pranto.
Numa cadela dilacerada jazida no pavimento
de cimento, ainda fresco.
Latidos esvaídos.
Esbatidos por uma infinita sede de coito.
Eles eram homens dali,
transfigurados cães da noite.
Vindos da sórdida madrugada,
despejaram toda a sua visceral raiva
numa inocente,
não ao acaso, desventurada,
alma.
Da janela do meu quarto vi tudo.
Ò vulto embaraçado,
resoluto, decido,
que fazes aqui,
nesta gélida madrugada?
Frenético e ofegante,
de hálito húmido e esfumaçante,
ignorou os meus pensamentos,
e seguiu a passada.
Numa agitação profunda,
vi cintilar uma luzinha alaranjada.
Mas esgazeada, a forma apagou
toda a presença iluminada.
Vi menos, e quase caí.
Porém o seguinte observei:
Da sua mochilinha retirou
uma latinha enferrujada.
(Presumi, há muito guardada.)
Preparada para um acto tremendo.
Maior que o próprio vândalo.
Serpenteou no ar vezes sem conta.
No túnel da minha rua,
eu vi, a jura que foi feita,
naquela gélida madrugada.
E de entre vitupérios e misérias,
(CONA, PORCOS, FDP, SLB, FCP, GANZA)
num traço infantil e nervoso,
apareceu a escarlate pigmentado,
AMT MT MIGUEL
15/02/2004